Remember Sampaio
Em finais de 2001, Jorge Sampaio promulgou uma Lei de Programação Militar, "aprovada" no Parlamento por uma minoria de deputados socialistas presentes. A causa de tão estranho facto foi o desacordo entre grupos parlamentares que inviabilizou o tradicional voto por "bancada". Exigia-se, portanto, a presença de um número suficiente de deputados para a aprovação da lei. Verificando-se que esse número não tinha sido atingido, a lei, formalmente, não foi aprovada pela Assembleia da República. E não tendo sido aprovada pela Assembleia da República, não podia o dr. Sampaio promulgá-la. Em discurso da época, afirmava o dr. Sampaio que «esta acusação atinge a minha honra e pretende pôr em causa o compromisso solene que tenho com os Portugueses naquilo que há, para mim, de mais sagrado». Mais esclarecia o difamado que, «a Lei de Programação Militar foi regularmente aprovada pela Assembleia da República», porque assim lho foi transmitido o Presidente da Assembleia da República. Curiosamente, a polémica surgiu precisamente antes da promulgação. E, também curiosamente, a promulgação seria consumada depois da avisada opinião de diversos constitucionalistas, entre os quais Jorge Sampaio, Vieira de Andrade, Freitas do Amaral (sempre presente) e Gomes Canotilho, unânimes em exigir uma "contagem dos votos", o "consenso nas praxes parlamentares" e a "menção expressa do número de deputados presentes" nas actas parlamentares, e na necessidade do presidente dar utilidade ao dever de «questionar e pôr em crise a veracidade dos elementos contidos no Diário da Assembleia da República». O dr. Jorge Sampaio pensou, repensou, virou e revirou, a questão, do alto da sua cadeira (singularmente reproduzida por reputada pintora portuguesa, residente no estrangeiro). Não houve contagem de votos, os grupos parlamentares não acordaram quanto ao voto por bancada, o diário da Assembleia da República nada refere sobre o número de deputados presentes, e o dr. Sampaio associou toda esta questão "à sua honra". Não consta, porém, que tenha chorado. Para justificar elevado acto de promulgação, sustentou o dr. Sampaio que, «a não ser assim, instaurar-se-ia um clima de desconfiança institucional, intolerável numa democracia, e insustentável para o Presidente da República, no plano das relações entre órgãos de soberania», acrescentando que «a crítica e o controlo recíproco entre os vários órgãos de exercício do poder político são bem-vindos e são indispensáveis à vitalidade do sistema democrático. O que não pode é confundir-se isso com a instauração de um clima de suspeição e conflito artificial entre as instituições.» Pouco tempo depois, seria esta a capa do Expresso: «JORGE Sampaio promulgou a Lei de Programação Militar violando o texto constitucional. Todos os constitucionalistas ouvidos pelo EXPRESSO - Jorge Miranda, um dos «pais» da Constituição, Marcelo Rebelo de Sousa, que se demitiu do Conselho de Estado em sinal de protesto, Armando Marques Guedes, ex-presidente do Tribunal Constitucional, Menéres Pimentel, conselheiro de Estado, Fausto Quadros, catedrático da Faculdade de Direito - são unânimes: a lei é inconstitucional e, à face do direito, "inexistente"». Em resumo: o partido socialista lá viu a famigerada Lei ser promulgada, e sempre se evitou um conflito artificial (daqueles perigosos, criados pela Constituição). Uma salva de palmas para o dr. Sampaio! [Jacinto Bettencourt] |
Comments on "Remember Sampaio"
Exigia-se, no mínimo, um pedido de fiscalização preventiva... não obstante, no melhor pano cai a nódoa. Mas isso já são discordâncias de fundo.
Ou pelo menos, uma violenta e moralizadora descasca no governo de então.
Caro Jacinto Bettencourt,
Li atentamente o seu post e desde a primeira linha recordei o caso sucedido. Esta situação na altura pôs em primeiro lugar A Assembleia da República e em segundo lugar Os Partidos Políticos nela representados em cheque e as normas instituidas entre eles, essa foi a verdadeira bronca não a trapalhada que Sampaio fez ao tentar cobrir e salvar o prestigio da AR. Okay admito o PR poderia ter tido uma atitude diferente. Não vou julgar isso. O que me levou a deixar aqui um comentário é que v. deturpa a questão deixando o essencial de fora. Acho tudo muito bem... para quem não tenha memória.
Admito também eu mesmo estar errado, nesse caso, apresento as minhas desculpas.
Caro Morgado Louro,
Também me lembro do facto dos partidos não terem chegado a acordo em questões de praxe parlamentar, e de os deputados do PS terem optado por ir comer qualquer coisa durante a votação. Tudo isso foi lamentável. Mas é de facto extraordinário que aquele que tanto invocava a Constituição, em tantos e chatérrimos discursos, perante o primeiro dilema tenha optado por marimbar no texto constitucional - contra o conteúdo de pareceres de juristas de vários quadrantes, e o contra o parecer de conselheiros de Estado. Se Jorge Sampaio queria defender o prestígio da República, pedia a fiscalização prévia, e assegurava a constitucionalidade formal da coisa.
Com os melhores cumprimentos,
Jacinto Bettencourt